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Texto escrito em ocasião da exposição
Petisco
07 de Outubro a 04 de Novembro de 2023, Projeto Vênus, São Paulo, SPpor Leonardo Stockler
Conhecemos a Natureza tanto pelas suas forças quanto pelos seus frutos. E se quisermos um dia imaginar uma Natureza diferente, talvez devêssemos começar pensando através destes dois produtos.
As obras de Stephanie Lucchese, é verdade, habitam uma mesma Natureza. Podemos contemplá-la através de suas imagens, enquanto cenas de uma biologia crepuscular. Seus frutos insólitos são ingredientes de um interminável banquete no qual esta vegetação imaginada celebra a si mesma - profano tornado sagrado sem que haja qualquer profanação.
A Natureza é verossímil, possui regras próprias. Se o maior interesse da artista repousa, ainda, sobre a ficção, é porque a ficção serve como porta de entrada para estes lugares. O tempo mítico, o prazer da nostalgia, penetrar um ecossistema segundo a lógica que o distingue dentre outros horizontes, e encontrar ali um outro jardim de delícias - para conseguir registrar essa paisagem, talvez seja necessário criar também uma religião própria para ela.
A Natureza se comunica, as narrativas emergem de uma mesma fonte - seus contornos podemos ver de relance, nos traços que se prolongam entre uma cena e outra, e que tentamos apreender como um processo contínuo de individuação, como se este banquete estivesse ainda em seus estágios puerperais, sem formas fixas ou definidas.
Por isso não vemos rostos. Os corpos, contudo, continuam se expressando - é que a face não está na cabeça. Como é o seu vocabulário? O enquadramento destas figuras não pode se pretender completo. Seus eixos não são absolutos. A inconclusão de suas formas é muito sutil. Se conseguimos discerni-los é porque a luz parece congelá-las - com uma delicada artificialidade, quase teatral. Mas logo assim que essa luz se apagar sobre a tela a Natureza voltará a celebrar a si mesmo, devorando seus próprios frutos.
Histórias de viajantes, catálogos naturalistas, mitologias e linhas do tempo alternativa, todas estas matérias servem de referência para a pesquisa que levou Stephanie ao desenvolvimento deste mesmo grande tema. Nenhum destes frutos existe em nossas enciclopédias terrestres. Suas nervuras e carnaduras, suas polpas e suculências são expressões originais, como combinações alternativas de uma mesma membrana básica e imaginária à qual todos os ramos da evolução remontam - inclusive aqueles que não existem. São visões de silhuetas que, capturadas em soslaio, poderiam ensejar um único e mesmo mosaico - uma religião quase feita unicamente de imagens procura pelos seus devotos já em suas próprias reentrâncias.
Em sua mitologia, em sua doutrina, em favor de uma certa verossimilhança interna, alguns objetos e formas estão banidos: tênis, relógios, celulares, eis alguns exemplos de itens que nunca veremos nestas paisagens. A imanentização do além é um ato de materialização mágica - e não se pode pretender trazer para este mundo aquilo que não é de seu interesse. Tudo aqui caminha para a repetição em uma ordem fora do tempo, e não se pode querer fugir desta autofagia mitológica. É assim que se sacraliza a forma?
A criação de um outro mundo envolve também uma certa fuga - temos de percorrer um outro plano. A potência poética que comunica uma outra vitalidade acaba por abrir, consigo, um outro espaço - é uma fuga para dentro. Ali, na cavidade que se abriu, contemplamos um novo planeta ou apenas uma versão deste em que já estamos? Artistas pintam aquilo que querem ver? É preciso ainda preservar um certo poder de sugestão, ocultar algumas angulaturas de seu conteúdo.
Em poucos movimentos, um deus desenhou as dimensões que acomodariam toda a nossa experiência. Qual foi o momento do qual se ergueu seu templo? Os personagens destas telas, frutos de uma estação eternamente profícua, se exibem uns para os outros como se ignorassem completamente as intenções do demiurgo que esculpiu as suas formas e sua matéria. Daqui, de onde estamos, tentamos discernir uma essência que pede para ser contemplada. Ela não se esconde sob um fundo metafísico. Sua substância é explícita - e mesmo assim é impossível capturá-la. Não há nada além da superfície.
E tudo chegou à forma que tem hoje através de um longo processo de modelagem - neste processo, as coisas se encontram encaixadas umas às outras. Mas quais são os gestos que queremos vê-las encenando? Nada é desconfortável. Cada pose involuntária que aqui se captura tem seu brilho próprio. O corpo é uma ação que se desenha - e vai de onde para onde? As cores ajudam a delimitar qual é a verdadeira extensão de cada reino. A morte se oculta, e é sempre com alguma elegância que ela assim o faz.
Existe um jogo de insinuação mútua entre o natural e o artificial.
Em qual cavidade do corpo a alma continua a se esconder?
Mãos gentis desenharam em uma tela aquilo que a mente concebeu: a transferência de vontade implícita ao ato acaba animando o inanimado.
No progresso da técnica, a maior celebração de nossa competência enquanto artífices é a criação de algo que nos distraia.
A imaginação é um prolongamento deste mundo na direção de um outro.
Há uma cor invisível no interior de todas as outras cores.
O sabor do sabor, o cheiro do cheiro, o som do som; a realidade se apoia num ato de contínuo de percepção, mas há algo, naquele que percebe, que não pode ser frontalmente percebido.
Que tipo de consciência parece querer brotar do fundo deste movimento?
O erotismo é uma virtude das formas.
O que é efêmero tende à expansão antes que seja subtraído pelo tempo.
No vazio branco de uma tela à sua espera, cada gesto é um ato criativo contrário à entropia; as chances diminuem conforme cada traço se executa.
O corpo caminha na direção de um fruto; o paladar é uma invenção do apetite.
Qual semente é capaz de fecundar um corpo imaginário?
A certeza de uma artista: a mente está sempre prenhe de algo maior do que a si mesma. Ela serve de passagem a algo que continuamente se coloca no mundo, indivíduo após indivíduo, impelindo a criação sempre para frente, na direção de novas paragens.
A Natureza veste fantasias adequadas ao seu próprio tempo; em nenhum momento ela está realmente morta. Energia é atualização de estado.
Os seus personagens se comportam como se, do outro lado da tela, houvesse um espelho - ali onde o poente não reconhece rosto algum, e só se pode chegar seguindo as orientações de estranhos tecidos invaginados.
Se o norte é inexistente, há um sul ainda mais ao sul; vegetações semi-eróticas se espraiam sobre um cálido chão que já não se pode ver.
Cada fruto enseja uma nova estação: a infância desaparece entre o verão e a primavera.
A eternidade é o movimento congelado; o instante é a promessa do seu desdobramento.
Em qual espécie o charme e a elegância se insinuaram primeiro? Por algum motivo, a afetação do estilo se prolongou na espécie humana, mas já parecia querer germinar no mundo mineral.
Medite sobre o seguinte tema: um tipo de sabor que não existe; uma cor que não existe; um som que não existe.
O corolário desta natureza reinventada: o centro de sua cadeia alimentar está disperso, como um círculo que não se fecha.
O silencioso sacerdócio das folhas; a misteriosa lealdade da sombra.
O desejo é o verdadeiro artesão da matéria.
A fugidia maturação de um alimento; à luz do tempo geológico, a festa dos sentidos é um banquete anônimo, e os convidados têm, entre os seus dentes, a memória dos seus antigos reis.
Deixar-se contemplar - de onde vem uma tal permissão?
A relação entre o embelezamento e o desperdício - a tendência da Natureza é conservar os seus experimentos bem-sucedidos.
O que se oculta, e o que pede pra ser visto - qual linguagem opera entre as fronteiras destes reinos?
A figuração de um processo digestivo que tende ao infinito; a mistura entre a matéria-prima nutriente e os resíduos do ofício.
Leonardo Stockler